OAM

Venerando Presidente do Tribunal Supremo
Venerando Presidente do Tribunal Administrativo
Venerando Presidente do Conselho Constitucional
Digníssima Procuradora-Geral da República
Sua Excelência Ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos
Digníssimo Provedor de Justiça
Suas Excelências Vice-Presidentes da Assembleia da República
Venerando Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal
Excelências Senhores Deputados da Assembleia da República
Sua Excelência Governadora da Cidade de Maputo
Sua Excelência Presidente do Conselho Municipal da Cidade de Maputo
Senhores Embaixadores e Membros do Corpo Diplomático Acreditado em Moçambique
Digníssimo Vice-Procurador-Geral da República
Senhor Comandante-Geral Da PRM
Venerandos Juízes Conselheiros, Digníssimos Procuradores-Gerais Adjuntos da República, Ilustre Presidente do Conselho Jurisdicional, Membros do Conselho Nacional e do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Advogados
Excelentíssimos Senhores Directores-Gerais do IPAJ, do SERNIC e do SERNAP
Venerandos Juízes Desembargadores
Digníssimos Vice-Procuradores-Gerais
Meritíssimos Juízes de Direito, Dignos Magistrados do Ministério Público, Ilustres Advogados, Meus Pares
Senhoras e Senhores
Todo o protocolo observado

Começo a minha intervenção manifestando a solidariedade da OAM para com as famílias de todos os nossos compatriotas que perderam a vida na lixeira de Hulene, bem como para todos aqueles que foram afectados pelas chuvas intensas na província de Sofala.

Valho-me também desta oportunidade para dar os sentimentos à Procuradoria-Geral da República, pelo passamento do Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o Dr. Orlando Generoso Rubene, sentimentos extensivos à família.

Em segundo lugar, não podemos estar indiferentes face à forma como vem decorrendo o processo para que o País viva uma paz efectiva e duradoira. Neste particular, reconhecemos os esforços de S. Exa. Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República e Alto Magistrado da Nação, bem como do líder da Renamo, Sr. Afonso Macacho Marceta Dhlakama.

A minha intervenção está estruturada em função das atribuições da OAM, termos em que aborda sucessivamente aspectos relacionados com: 1)a Consolidação do Estado de Direito; 2) a Defesa dos Direitos e Liberdades Fundamentais; 3) Promoção do Acesso à Justiça; 5) Pronunciamento sobre os projectos de diplomas legais; 6) Promoção do Respeito pela Legalidade e 7) Luta pela dignidade e prestígio da profissão, bem como defesa das imunidades dos advogados. Assim,

1. Consolidação do Estado de Direito Democrático
Na sequência dos consensos alcançados, está em o processo de revisão constitucional. Impõe-se fazer aqui uma pequena reflexão em torno deste processo: desde logo, é importante que seja promovido um debate público alargado, para discutir a operacionalização jurídica dos consensos alcançados, pois, doutro modo, estaríamos a excluir sensibilidades relevantes e, eventualmente, a correr o risco de deixar de fora outros factores susceptíveis de pôr em causa a paz. Se queremos defender o Estado de Direito, onde a ampla participação de todos é uma característica fundamental, não podemos aceitar que os moçambicanos não sejam ouvidos. Não seja esta posição interpretada como sendo desrespeitadora dos mandatários do povo. Aliás, a este respeito, S. Exa. Filipe Nyusi, Presidente da República, na comunicação que fez à nação no dia 7 de Fevereiro do corrente ano, referiu, no ponto 4 da referida comunicação, que ele e o líder da Renamo falaram “…das vantagens das decisões serem tomadas com a participação de todos para tornar eficaz a sua implementação”.

O n.º 2 do artigo 291.º da Constituição da República estabelece que “As propostas de alteração devem ser depositadas na Assembleia da República até noventa dias antes do início do debate”. Esperamos que as propostas sejam apreciadas depois de uma reflexão profunda em torno da matéria, nos noventa dias impostos pela Constituição da República, para não corrermos o risco de adoptar soluções precipitadas e inconsistentes, susceptíveis de gerar conflitos no futuro.

Não podemos correr o risco de proceder a alterações que se centram na acomodação de pessoas, subalternizando programas de desenvolvimento económico e social. É que, a criação de Assembleias Distritais pode ter um impacto financeiro grande.

Outro aspecto que deve ser objecto de especial atenção é a impossibilidade de termos candidatos independentes nas eleições autárquicas, pois com essa solução os munícipes ficam impedidos de ter um Presidente de Município capaz e com o qual se identificam, porque a maioria na Assembleia Municipal é que indica o Presidente do Município.

Relativamente ao processo comummente denominado como o “caso das dívidas ocultas”, achamos que constitui um passo importante a remessa de informação ao Tribunal Administrativo. Mas convenhamos que, para um Processo de Instrução Preparatória identificado como sendo n.º 1/2015, sem arguidos constituídos volvidos três anos, mesmo depois do relatório da Kroll revelar que USD 500.000.000,00 (quinhentos milhões de dólares) tiveram uma aplicação desconhecida, é, no mínimo, estranho.

Há necessidade de se tratar este processo com a seriedade que ele merece, sob pena da justiça moçambicana cair num descrédito total.

No que tange às prisões preventivas, continuamos com situações de aplicação abusiva. Estranho é que juízes da instrução criminal há que legalizam prisões ilegais, o que é, de todo em todo, inaceitável, pois o n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República estabelece que “…ninguém poder ser preso…senão nos termos da lei”. Vale aqui fazer um apelo às vítimas destas situações de prisão ilegal, bem como aos advogados e magistrados do Ministério Público, para diligenciarem no sentido de desencadear processos de responsabilização criminal dos agentes da polícia que prenderem sem mandado judicial, quando não seja em flagrante delito.

2. Defesados direitos e liberdades fundamentais
Em meados do ano transacto circularam vídeos que retratavam maus tratos a cidadãos diversos, nas minas de Rubi de Namanumbiri no Distrito de Montepuez, factos que consubstanciam autêntica e grosseira violação dos direitos humanos.

A este respeito esperamos que as autoridades competentes, por um lado tomem as acções necessárias à responsabilização dos autores daqueles actos bárbaros e, por outro, que seja cumprida toda a legislação vigente e as boas práticas internacionais aplicáveis às situações de reassentamentos decorrentes do exercício de actividades económicas.

São comuns as situações de violação dos direitos das comunidades afectadas pelos grandes empreendimentos económicos. Apraz-nos dar conta que a Ordem dos Advogados tem estado a intentar acções judiciais em defesa dos direitos de diversas comunidades e já obtivemos, relativamente a um dos processos, uma decisão favorável, condenando a Jindal a realizar o reassentamento nos termos previstos na lei.

Tal como referi na parte introdutória, na Lixeira de Hulene ocorreu uma verdadeira tragédia: 16 concidadãos perderam a vida, porque não foram tomadas medidas no sentido de impedir que vivessem naquele local. Como esta situação há várias, podendo aqui, e a título de exemplo, indicar as pessoas que têm casas nas proximidades da portagem da Matola, numa zona propensa a inundações e na zona de reserva ao longo da auto estrada e da linha férrea. Um descarrilamento naquela zona, ou um acidente rodoviário brutal com saída de veículos da estrada, ou a ocorrência de chuvas torrenciais, poderão provocar luto. No Catálogo dos Direitos, Liberdades e Garantias individuais, a Constituição da República estabelece no n.º 1 do artigo 59.º que “Na República de Moçambique, todos têm direito à segurança…”. Quando os órgãos do Estado ou Municipais não observam esta disposição constitucional e demais legislação aplicável, como foi o caso, ficam aqueles entes com a obrigação de indemnizar os lesados, tal como resulta da própria Constituição da República.

Neste capítulo não posso deixar de me referir à situação de sobrelotação dos estabelecimentos prisionais, com pouco mais de um terço em prisão preventiva e um número considerável de reclusos condenados por penas até dois anos. Em alguns destes estabelecimentos os níveis de sobrelotação são tais que os reclusos fazem escala para dormir, visto que não podem dormir todos simultaneamente. Esta é uma situação grave e desumana, carecendo de medidas corajosas e urgentes de quem de direito.

3. Promoção do acesso à justiça
Constatamos muitas melhorias no tratamento oferecido aos réus nas audiências de julgamento, que já não são obrigados a responder de pé, muitas vezes durante horas. Temos de continuar a lutar para que os juízes que continuam relutantes permitam que os réus respondam sentados, quanto mais não seja em consideração ao princípio da presunção de inocência.

Os crónicos problemas da falta de celeridade processual e da marcação de audiências de julgamento para a mesma hora, em desrespeito pelos utentes dos tribunais e demais actores do sistema de administração da justiça, continuam caracterizando a nossa justiça. Muito sinceramente, esta última questão não tem qualquer justificação plausível.

As custas judiciais continuam sendo obstáculo à justiça. Sabemos que o Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos lidera o processo de revisão do diploma e a nossa expectativa é que as alterações sejam substanciais e o código deixe de constituir obstáculo à justiça.

Como sabem, nos termos estabelecidos no n.º 1 artigo 43.º do Código de Processo Civil, “Se a parte não encontrar quem aceite voluntariamente o seu patrocínio, pode dirigir-se à Ordem dos Advogados ou à respectiva delegação para que lhe nomeiem mandatário”. O n.º 4 do referido dispositivo legal acrescenta que “Ao juiz pertence a nomeação de mandatário quando, havendo urgência e a nomeação não possa ser feita nos casos indicados nos números anteriores e a Ordem dos Advogados a não faça dentro do prazo que tenha sido indicado”. Estranhamente temos experimentado algumas dificuldades, uma vez que as credenciais que emitimos nomeando os advogados nem sempre são aceites pelos magistrados.

A propósito da assistência a cidadãos carenciados, a OAM manifestou ao SERNIC, SERNAP e PRM, interesse de celebrar memorandos de entendimento para definir as regras a seguir, mas inexplicavelmente, há mais de um ano que não há qualquer resposta, o que nos leva a presumir que não haja interesse, por parte daquelas instituições, de promover e garantir o direito de defesa, um direito constitucionalmente consagrado. Esperamos que as propostas de memorandos sejam apreciadas com a urgência que o assunto precisa e merece.

4. Pronunciamento sobre os projectos de diplomas legais
Por força do respectivo estatuto, a OAM deve pronunciar-se sobre os projectos de diplomas legais que interessam ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário em geral, ao foro judicial e à investigação criminal.

Sentimos, neste particular, que muitas vezes não são concedidos prazos razoáveis para apreciação das matérias constantes dos projectos, o que, à partida, nos impede de emitir os pareceres solicitados, com as implicações que daí possam advir. Há, pois, que estabelecer prazos em função da sensibilidade de cada instrumento a ser apreciado.

Aquando da abertura do ano judicial 2017 referimos que estávamos satisfeitos com o facto de se ter finalmente criado um serviço autónomo da PRM, vocacionada para a investigação criminal. Refiro-me ao Serviço Nacional de Investigação Criminal – SERNIC. Ficamos convencidos que o SERNIC estava a funcionar, mas, para nosso espanto, a instituição quase que só tinha nomeados o Director-Geral e o Director-Geral Adjunto, sendo que só em Fevereiro de 2018 foi nomeado o primeiro grupo de dirigentes.

A pergunta interessante é: afinal com quem é que o Director-Geral do SERNIC contou em 2017? A instrução preparatória e as diligências a esta inerentes eram efectuadas pela PRM? Se sim, que poderes tinha a PRM para tanto e qual a validade dos actos de agentes da PRM quando a competência é atribuída por lei ao SERNIC?

Termino este capítulo referindo que a proposta de criação da Defensoria Pública deve ser objecto de um amplo debate envolvendo os actores do sistema de administração da justiça.

5. Promoção do respeito pela legalidade
Alguns agentes da PRM continuam a brindar-nos com situações de tratamento degradante e maus tratos, bem como de uso excessivo da força, algumas vezes baleando cidadãos indefesos, alegadamente criminosos numa confrontação com a polícia.

Exemplo de maus tratos de cidadãos é o caso ilustrado em vídeos que circularam, com reclusos que se haviam evadido do estabelecimento penitenciário da Beira a serem molestados. Instamos o Comando da Polícia a manter os cidadãos informados das acções de responsabilização dos agentes que cometeram esta infracção disciplinar e criminal.

Em Abril de 2017, a viatura da PRM em que José Ali Coutinho e José Muchanga, que se encontravam a cumprir penas de prisão nas celas do Comando da PRM Cidade de Maputo, eram transportados, alegadamente para interrogatório na 1.ª Esquadra da PRM, foi alvejada em plena baixa da cidade, tendo ficado imobilizada com múltiplas perfurações. Na ocasião a PRM precipitou-se a comunicar que tinham sido resgatados por comparsas, mas o certo é que dias mais tarde os seus corpos foram encontrados algures no Distrito da Moamba. Refira-se que circularam imagens do Coutinho, com sinais claros de lhe terem sido aplicadas vergastadas nas nádegas, o que significa que há tratamento cruel nos estabelecimentos penitenciários.

Não encontramos razoabilidade na explicação oferecida pela polícia, como também estranhamos o facto de que os atacantes tivessem poupado em absoluto os agentes da PRM. Estranhamos os motivos que levaram a polícia a afirmar que os corpos não eram daqueles cidadãos, mesmo depois dos serviços de medicina legal terem emitido relatório nesse sentido. A nossa preocupação tem a ver com o facto de que a polícia não deu qualquer indicação de ter sido instaurado procedimento disciplinar contra os agentes que, à margem da lei, foram buscar aqueles cidadãos que cumpriam penas, quando a regra é que os interrogatórios nestas situações sejam feitos no estabelecimento penitenciário.

Este crime deve ser devidamente investigado e responsabilizados os autores. O mesmo se diga com relação ao episódio ocorrido na EN1, saída da cidade de Maputo, em que a PRM abateu 7 indivíduos que seguiam numa viatura mini bus, alegadamente assaltantes de residências, um caso notável de uso excessivo de força pela PRM.

Ainda no domínio da defesa da legalidade não podemos deixar de falar do famoso caso dos vidros escuros, em que a PRM, sem qualquer fundamento legal, removia as películas e aplicava multas. Tivemos acesso a um parecer da Procuradoria-Geral da República que termina referindo que o uso de películas é ilegal, mas discordamos absolutamente desta posição. Aliás, se fosse proibido ter os vidros escuros, o INATTER não teria preparado uma proposta de Decreto para introduzir essa matéria no Regulamento do Código da Estrada.

Na nossa opinião este assunto dos vidros escuros é um falso problema. Não são os vidros escuros que são causa de criminalidade, nem é por causa deles que os autores não são encontrados.

Se as autoridades quiserem saber de uma situação que constitui verdadeira alteração das características dos veículos, que cuide de verificar se as viaturas que passaram a ser movidas a gás averbaram tal facto nos respectivos livretes, pois essa sim, é uma característica definida por lei e que não pode ser alterada sem que as autoridades competentes averbem.

6. Luta pela dignidade e prestígio da profissão, bem como defesa das imunidades dos advogados
Em 2017 registamos dois casos paradigmáticos: o primeiro, da prisão de um advogado por alegado envolvimento em crimes de rapto, que entretanto foi restituído à liberdade depois de ultrapassados os prazos de prisão preventiva sem culpa formada. A este respeito pergunta-se se a prisão resultou de uma investigação prévia ou se, ao invés, foi decretada para investigar. Se um advogado é sujeito a uma situação desta natureza, podemos imaginar o que acontece com o comum dos cidadãos.

A segunda situação ocorreu no Tribunal de Inhambane, em que o Juiz da Causa suspendeu um advogado do exercício da profissão, ao abrigo do disposto no Código de Processo, sabido que a suspensão de advogado é uma sanção disciplinar e a alínea i) do artigo 4.º do EOAM estabelece que constitui atribuição da Ordem dos Advogados exercer jurisdição disciplinar exclusiva sobre os membros, uma norma constante de uma lei nova, que revoga, obviamente, qualquer norma anterior que lhe seja contrária.

Considerações finais

Já vai longa a minha intervenção. Porque fui apresentando considerações no final de cada assunto, permito-me terminar sem apresentar considerações finais, referindo apenas que são ainda insuficientes os esforços empreendidos com vista a fortalecer o nosso sistema de justiça e devemos continuar a desenvolver acções com vista à promoção da cultura de cumprimento escrupuloso das leis, pelos actores relevantes do sistema de administração da justiça. Doutro modo, tal como já foi dito anteriormente pelos meus antecessores, teremos uma justiça forte para os fracos e fraca para os fortes.

Temos de passar a ter vergonha de manter tamanha indiferença perante situações sérias de violação de direitos fundamentais, temos de nos sentir incomodados pelo facto de não esclarecermos em tempo útil, dossiers importantes, cujo desfecho é aguardado com bastante ansiedade pelo povo moçambicano, como é o caso do processo das dívidas ocultas.

Com uma justiça forte estarão criadas condições para um efectivo desenvolvimento económico e social e, em consequência, redução das desigualdades sociais e melhoria das condições de vida de todos nós e das gerações vindouras.

Pela atenção dispensada, o meu muito obrigado.

Maputo, 1 de Março de 2018.

 

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